Literatura enquanto rasura

O mais recente artigo do escritor gaúcho, Cassio Pantaleon acende uma nova luz sobre o debate entre discurso ideológico e liberdade literária neste conturbado cenário do século 21.

Pantaleoni faz uma profunda reflexão filosófica, com base na publicação do professor de Linguística da USP, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, no site Carta Maior, publicado em 13 de julho. Esta é a proposta do artigo “Literatura enquanto rasura”. No texto, ele ressalta a questão do racismo na interpretação de fragmentos do “Sítio do Pica-pau Amarelo”, de Monteiro Lobato. Já faz algum tempo, Lobato foi acusado de racista pelo tratamento que deu à Tia Anastácia em sua obra. O assunto avivou a chama polêmica do politicamente correto no mundo da literatura.

Em seu artigo, Pantaleoni faz uma reflexão sobre a literatura como instrumento de resistência ideológica, e seu o autor como uma arma nesta luta. No texto da Carta Maior, Pietroforte recupera a discussão sobre a função ética ou estética da literatura. Na opinião de Pantaleoni, isso desvia o assunto para o campo ideológico e consequente para o desgaste literário. Segundo o próprio autor, “a literatura, assim como a filosofia, não é um discurso; é uma reflexão, é a reconsideração das dúvidas do escritor. Quando ela abdica da dúvida, do seu caráter de ser incerta, e se torna ideológica ela perde o estatuto de ser literaratura, tornando-se discurso.”.

 

Literatura enquanto rasura por Cássio Pantaleoni
 

Recentemente recebi do amigo e jornalista Vitor Diel o reparável artigo do Professor de Linguística da USP, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, publicado no site Carta Maior. O texto investiga – de modo preliminar – a relação entre literatura e ideologia, recolocando a questão teleológica em pauta: afinal, seria o fim – o objetivo – da literatura algum engajamento político? Deveria a literatura ser instrumento de resistência a essa ou aquela ideologia?

Antes de querer assumir a desenvoltura de Pietroforte na articulação do tema, penso que devemos estudar as ideias discutidas no seu texto a partir de uma reproposição interpretativa. Depois, com base nessa análise inicial, podemos tentar uma resposta para a pergunta fundamental do artigo do linguista.

Vejamos o primeiro parágrafo, aquele em que ele – o autor – revisita a polêmica acerca de preconceitos embarcados nas obras literárias de autores brasileiros consagrados. Pietroforte apresenta-nos um fragmento da obra de Monteiro Lobato e pergunta: “…em Literatura, como lidar com isto: ‘Tia Nastácia era uma negra de estimação’.”
É preciso admitir: a pergunta, para qualquer pessoa que esteja sensível ao tema do racismo, é bastante pertinente, afinal o fragmento parece considerar duas dimensões do possível racismo de Lobato. A primeira delas diz respeito ao momento histórico onde Lobato estava inserido, momento em que as nuances do racismo do Brasil da República Velha moldavam o pensamento corrente. A segunda dimensão do referido racismo está no próprio fragmento, ao compor uma sentença onde a palavra “negra” associada à palavra “estimação” aproxima-se da comparação inevitável com os “bichos de estimação”.

Se cogitamos interpretar a primeira dimensão do suposto racismo ali expresso, usando Heidegger e o seu conceito de ser-no-mundo, deveríamos ser mais complacentes com Lobato e o seu pensamento pretensamente racista. Como Heidegger explica, ao desenvolver a Analítica Existencial na sua obra Ser e Tempo, através do conceito de “Fürsorge” – aludindo às dimensões de já-ser-no-mundo, para-adiante-de-si e junto-aos-entes –, o homem jogado no mundo de sua existência temporal acontece como facticidade, projeto e discurso, respectivamente. O que isso significa? Ora, Lobato acontece no mundo como ser-aí, como fato incontornável na facticidade do seu mundo. Todo o projeto de ser dessa ou daquela maneira parte daquilo que é fundado quando ele acontece de ser-no-mundo no caráter de estar imerso nos fatos de seu tempo, assim como todo o seu discurso de ser. Então não podemos nos surpreender que o ruído de fundo do pensamento de Lobato esteja aproximado das nuanças do Brasil da Republica Velha.

Entretanto, temos essa pretensão de esperar que todo o intelectual deveria primeiramente colocar em questão manifestações opressoras como essa. Supostamente, os intelectuais – pela sua própria condição de pensamento – deveriam estar atentos para esses hábitos preconceituosos. Nós estamos dispostos a afirmar – à luz de nossa circunstância de mundo e ideologias correntes – que todo o escritor deveria ter escuta para preconceitos tais como o racismo; o escritor deveria, sim, através de sua literatura, travar a luta ideológica libertária. Com base nessa ideia, o crítico apressado não pouparia Lobato: como um escritor da tal envergadura não manifestou-se contra o racismo no seu Sítio do Pica-Pau Amarelo? Ao contrário, como pode expressar-se de modo racista?

Bem, creio que, apesar das condições do pensamento à época, não podemos julgar de maneira tão decisiva as metáforas de Lobato – essas que ele utilizou para representar Tia Anastácia – como se fosse franca alusão racista. Antes precisamos avaliar se os nossos juízos – desde a perspectiva histórica no qual estamos inevitavelmente incluídos e assentados – não inoculam esse aludido racismo nas metáforas do criador de Narizinho. O que devemos considerar é a hipótese de que o racismo estaria na nossa interpretação e não necessariamente na intenção fundamental desse escritor. Para tanto, recorro à segunda dimensão de análise, ou seja, as articulações metafóricas de Lobato tal como aquela expressa no fragmento ‘Tia Nastácia era uma negra de estimação”.
Como já expliquei previamente, a leitura do fragmento (desde a circunstância histórica que ora realizamos na função de críticos de Lobato) flerta com os sentidos comuns que as palavras ali utilizadas fazem aparecer. É preciso reconhecer que “negra”, quando associado à “estimação” carrega – pelo menos no juízo de muitos leitores – qualquer sentido pejorativo, haja vista que nos referimos desse modo muito usualmente aos nossos bichos de estimação. Seria de todo deselegante então conceder o mesmo estatuto à Tia Anastácia, o estatuto de um mero bicho de estimação. Contudo, deveríamos dar espaço de defesa à Lobato, pelo menos naquilo que pretende (ou poderia) ser a sua representação metafórica do sentimento (possivelmente carinhoso) que era ofertado ao convívio entre a Tia Anastácia e a turma do sítio.

Há que se recuperar o sentido de estimação que deriva de sua forma verbal estimar, cuja etimologia remete ao latim arcaico aestumare, que significa valorar, ter em conta, apreciar; significados cujo o uso popular aproximou deprezar-se ou considerar. Mas apelar à etimologia não é suficiente. Para que se possa efetivamente entender a dimensão do uso dessa palavra no fragmento de Lobato, precisamos ainda testar algumas variantes, haja vista que a palavra “negra” empresta na apreensão geral da sentença um tanto de preconceito racial. Troque-se a palavra “negra” por “loira” e já o sentido da frase hesita: “Tia Anastácia era uma loira de estimação”. É possível que tal versão suscite agora em alguns leitores algo de engraçado ou espirituoso. Entretanto, mesmo agora (insisto: para certos leitores) o sentido poderia acontecer em sua forma pejorativa, como se loiras não pudessem ser estimadas comumente. Então, tentemos agora humanizar ao máximo a frase e nos afastar de quaisquer referências pejorativas: “Tia Anastácia era um humano de estimação”. Nessa versão, o sentido mais primordial da frase quer acontecer de maneira menos difusa: Tia Anastácia era o tipo de humano pelo qual as pessoas do sítio nutriam estima, valorizavam, apreciavam, consideravam etc.
É necessário ponderar se Lobato, através dos seus notáveis recursos linguísticos e de seu conhecimento sobre o mundo, não poderia ter pensado em escrever assim: “Tia Anastácia era uma afrodescendente muito estimada no sítio”. Nesse formato, o fragmento continua dizendo a mesma coisa, mas o aspecto pejorativo se dilui completamente. Mas como fica o efeito ao leitor infantil, à audiência pretendida pelo escritor?

A pergunta que necessita ser recolocada a partir desse fragmento é: qual o sentido primordial que Lobato pretendia oferecer ao leitor? Seria uma tentativa de ser engraçado, como no exemplo da “loira”? Seria uma tentativa de dizer que ela era muito considerada? Mas e como isentá-lo da acusação de racismo quando em outra parte do texto ele se refere a Tia Anastácia como “macaca de carvão” ou refere-se a ela como alguém de “carne preta”? Não podemos simplesmente ignorar tais metáforas e também não podemos ignorar que são metáforas; ou seja, são representações pretensamente espirituosas (pretensamente!). Contudo, será que o sentido pejorativo vigorava no pensamento de Monteiro Lobato ou no pensamento do leitor preconceituoso? Bem, a pergunta alude ao problema da interpretação.

O problema com a interpretação é que, ao menos que o autor estivesse sob o detector de mentiras ao ser perguntado sobre sua intenção original, todas as hipóteses disputam o privilégio de ser a verdade. No século XXI, onde o niilismo abre os braços até para o espaço hermenêutico (vide os estudos de Vattimo, pensador italiano que denuncia a fragilidade da razão), o que nos convence é apenas a “fábula” que mais nos cativa (como diria Nietzsche). Ressalte-se aqui que o niilismo hermenêutico (que acusa a interpretação de não possuir o estatuto de ser verdadeira ou necessária, em qualquer caso) instrumentaliza o pensamento para uma posição libertária sem precedentes na história do pensamento humano. O problema é que assim o niilismo hermenêutico também se dá como desautorização de todo e qualquer discurso que pretende o estatuto de verdade fundamental, mesmo o discurso que alude à liberdade, retirando também da liberdade o estatuto de ser verdadeira e necessária. Mas isso é assunto para outro momento.

Recupere-se por ora as perguntas iniciais: deveria a literatura ser instrumento de resistência a essa ou aquela ideologia? E o autor deveria ser uma arma de luta ideológica?
O artigo de Pietroforte recupera essa discussão sobre a literatura em sua função mais essencial, a saber: a Literatura deveria cumprir a função ética ou estética? Particularmente, creio que essa conjunção alternativa – “ou” – desvia a discussão inevitavelmente para o campo das posições ideológicas e torna a literatura refém de paradigmas que a desgastam. Por que não sugerir que a Literatura seja antes de qualquer coisa algo sem função ou até mesmo inútil? Aqui não devemos entender a inutilidade da literatura como se ela – a literatura – fosse algo sem sentido, mas antes uma inutilidade que a recoloca no espaço de estar sempre em obra de uma representação do zeitgeist (o espírito de época), acontecendo como já-assim, desse-modo, diante-de e junto-à, através daquilo com a qual ela se instrumentaliza – a palavra.

Ao meu modo de ver e pensar, ao escritor cabe representar o seu mundo, na sua época, adiante do dizer do seu tempo mas partindo do costume do dizer, e junto aos sentidos possíveis. Fazer Literatura é estar sempre em obra da representação e talvez até refém dela. Todavia, há que admitir que a perspectiva é sempre determinante. E talvez por essa razão ela nunca deveria ser submetida ao banco dos réus. Acho difícil exigir do escritor que ele esteja na mesma posição do leitor ou do crítico, porque seria uma literatura sem legitimidade, seria literatura conveniente. A literatura, assim como a filosofia, não é um discurso; é uma reflexão, é a reconsideração das dúvidas do escritor. Quando ela abdica da dúvida, do seu caráter de ser incerta, e se torna ideológica ela perde o estatuto de ser literaratura, tornando-se discurso.

Ao meu modo de ver a literatura é assim sempre uma rasura na história oficial; algo que alguns creem que deva ser corrigido para que o status quo não seja ameaçado. Isso não quer dizer que a rasura seja algo bom ou ruim. Seja como for, enquanto rasura, a Literatura mais acontece assim: como arte, como travessura, como provocação. Quando a travessura se torna mais interessante que a história, quando nos ocupamos mesmo com ela mais do que com a história oficial, a Literatura acontece de ser efetivamente libertadora, mesmo quando elicia críticas ou acusações de preconceito. Nesse caso, ela liberta a outra história – aquela que poderia ter sido (o que efetivamente não tem qualquer utilidade). Apesar disso, saber que poderia ter sido de outro modo nos dá alguma esperança. A esperança de que antes da crítica alguém tente entender que tudo não passa de uma história. Apenas uma história. A Literatura não prova nada.
A literatura e a filosofia não são discursos. São reflexões. Quando elas abdicam disso tornam-se ideologias e perdem o estatuto de ser literatura ou filosofia.

Sobre o autor

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

 

Por: Ovni Comunicação