TEXTO DE ANDRÉ BERNARDO, DA BBC NEWS
Há exatos 40 anos, o músico e empresário Marco Antônio Mallagoli, então com 27 anos, meteu na cabeça que queria passar o aniversário de 40 anos de John Lennon, no dia 9 de outubro de 1980, ao lado do ídolo. Fácil não seria, pensou. Mas, não custava tentar.
Alguns amigos tentaram dissuadi-lo da ideia: “Cara, ele odeia fã. Vai cuspir na sua cara!”, argumentaram os mais exaltados.
Mallagoli deu de ombros. Fã dos Beatles desde 1963, quando ouviu, pela primeira vez, uma canção do quarteto inglês, tomou as devidas precauções: a primeira delas foi arranjar um canto para ficar em Nova York.
Não poderia ter encontrado um lugar melhor: Osni Omena, o primo de um amigo que curtia os Fab Four, morava na rua 71, a um quarteirão do Dakota, o prédio em que Lennon e a mulher Yoko Ono, moravam, e lhe abriu as portas do apê.
O passo seguinte foi providenciar um presente para o aniversariante: um exemplar de Os reis do iê-iê-iê (1965), a versão brazuca da trilha-sonora do filme A hard day’s night (1964), com dedicatória e tudo.
Mallagoli chegou a Nova York por volta do dia 5 de outubro. Todos os dias, ele passava uma média de oito horas, das quatro da tarde à meia-noite, na frente do Dakota.
Na esquina da rua 72 com a Central Park West, em Manhattan, o Dakota entrou para a história como o edifício residencial mais famoso do mundo.
Com pé direito alto, paredes revestidas em mogno e chão de mármore, o lugar abrigou astros e estrelas, como a atriz Judy Garland (1922-1969), o bailarino Rudolf Nureyev (1938-1993) e o casal John Lennon e Yoko Ono, que se mudou para lá em 1973.
“Nos anos 1980, o Dakota tornou-se um dos points turísticos mais badalados de Nova York. A qualquer hora do dia ou da noite, havia curiosos na porta do edifício, querendo ver seus moradores ilustres”, relata Omena, que mora em Nova York desde o verão de 1980 e trabalha como designer 3D.
Em pouco tempo, Mallagoli tornou-se “amigo de infância” de um dos porteiros do Dakota, o cubano José Perdomo, de 45 anos. Para selar a amizade, deu de presente a ele “um maço de cigarros e uma garrafa de cachaça”. Em retribuição, pediu a gentileza de entregar ao morador mais ilustre do prédio o LP que trouxera do Brasil.
No grande dia, o do aniversário de John Lennon, Mallagoli não era o único a querer dar os parabéns ao ídolo. Uma pequena multidão se formou na frente do Dakota.
A certa altura, o pequeno Sean, que faz aniversário no mesmo dia em que o pai, berrou da janela do sétimo andar: “Há uma surpresinha pra vocês na portaria!”.
O ex-beatle havia providenciado fatias de bolo, embrulhadas em papel alumínio, e balões coloridos autografados para os fãs.
Em vez de pegar seu pedaço, Mallagoli puxou conversa com o sujeito que trouxera os presentes. Quando descobriu que se tratava de Frederic Seaman, secretário particular do artista, perguntou se o aniversariante tinha gostado do presente que lhe dera na véspera. “Ah, então, foi você?”, espantou-se. “John já ouviu umas três vezes. Há muito tempo ele não ouvia um disco dos Beatles…”, disse.
Nessa hora, Mallagoli encheu-se de coragem para perguntar se não daria para ele subir um pouquinho e, quem sabe, conhecer o ídolo de perto. “Não, não daria”, respondeu Seaman.
“Gente como a gente”
No dia seguinte, Mallagoli estava lá, de novo. Deu de cara com uma limusine, estacionada na porta, com o motor ligado. “Ele deve sair a qualquer momento”, pensou. Não deu outra. Dali a pouco, a moça com quem Mallagoli conversava emudeceu e arregalou os olhos.
Era a senha. Atrás dele, John Winston Ono Lennon, com seu indefectível óculos de aro redondo.
Sem perder tempo, Mallagoli se apresentou como o presidente do fã-clube Revolution, do Brasil. John retribuiu o cumprimento, agradeceu pelo presente e os dois começaram a conversar.
“Por que você nunca foi ao Brasil?”, Mallagoli puxou conversa. “Por que nunca me convidaram”, respondeu John. “Então, a partir de agora, considere-se convidado”, sorriu. Em seguida, Mallagoli quis saber se Lennon estava trabalhando em algum novo disco. “Sim, ele vai se chamar Double Fantasy“, respondeu, referindo ao seu quinto álbum de estúdio, lançado em novembro de 1980. Pouco depois, contou alguns de seus planos para o futuro: lançar outro álbum, Milk and Honey, no comecinho de 1981 e, em seguida, sair em turnê pelo Japão, Europa, EUA… “E Brasil”, interrompeu Mallagoli. “Pois é, e Brasil”, concordou o cantor.
Neste momento, John contou algo que fez o coração de Mallagoli disparar: “Depois que eu terminar a turnê, vou ligar para Paul, Ringo e George e ver o que nós vamos fazer da vida!”.
“A ideia dele era reunir os Beatles para gravar mais alguns discos”, recorda Mallagoli. “Cada um deles continuaria com sua carreira solo, mas, de tempos em tempos, os quatro se reuniriam para tocar juntos”.
Dessa vez, é Lennon quem faz uma pergunta: “De qual música da banda você mais gosta?”. “De todas”, desconversou o fã. “Escolhe uma!”, insistiu o ídolo. Na hora, Mallagoli pensou na primeira que ouviu, em 1963, quando tinha 11 anos: She loves you. “Por quê?”, ficou curioso. “Por nada…”, despistou Lennon, com um sorriso maroto, e acrescentou: “Quando você volta para o Brasil?”. “Ainda hoje”, lamentou, consultando o relógio. E se despediram.
“Foram os 15 minutos mais mágicos da minha vida”, garante Mallagoli, hoje aos 67 anos. “Uma emoção difícil de explicar”.
A caminho da limusine, John parou, voltou-se para Mallagoli e deu a impressão de que queria dizer algo. No entanto, mudou de ideia e entrou no carro. Algum tempo depois, Mallagoli perguntou a Seaman se, por acaso, ele sabia o que John queria lhe dizer. “Bem, ele pensou em convidá-lo para assistir às gravações do disco no estúdio. Mas, como você estava de viagem marcada, não quis atrapalhar”, explicou o assessor.
“Puxa, meu, se soubesse disso, nem voltaria mais para o Brasil!”, cai na risada.
As fotos que registraram o encontro entre Lennon e Mallagoli foram tiradas por Osni. “Sim, também sou fã dos Beatles. Mas, não tanto quanto o Mallagoli”, diverte-se o amigo. “Minha primeira reação foi pegar a câmera da mão do Mallagoli para registrar o momento. John Lennon foi muito atencioso e receptivo. Gente como a gente”, descreve.
Futebol na rua
Ao contrário do que dissera a John, Mallagoli ficou mais um dia em Nova York. Antes de regressar ao Brasil, no dia 11, deu uma última passada no Dakota, para despedir-se de José Perdomo. Entre outras histórias, o porteiro cubano contou que, na Páscoa daquele ano, Paul, Linda e os filhos passaram alguns dias em companhia de John, Yoko e Sean.
“Certa noite, John e Paul desceram com algumas crianças do prédio, fecharam a 72 e jogaram bola ali mesmo. Não havia ninguém na rua”, contou Perdomo. Não parou por aí. Segundo Lennon teria lhe dito, o ex-Beatle planejava, em breve, pular o Carnaval no Brasil. “De máscara, para não ser reconhecido”, salientou o cubano.
De volta ao Brasil, Mallagoli recebeu, depois de alguns dias, um telefonema de Fred Seaman. O secretário de Lennon confirmou a intenção do cantor de excursionar pelo Brasil. “A ideia era fazer show em todos os Estados, pegar o dinheiro da bilheteria, pagar o cachê da banda e doar o resto da grana para alguma instituição de caridade local”, recorda.
Mais alguns dias se passaram até Mallagoli receber uma encomenda pelos Correios: o disco de ouro de She loves you, acompanhado de um bilhete escrito por Simmons. “Lennon me disse que esse disco vai estar melhor em suas mãos do que nas dele”. Mallagoli ligou para agradecer. “Lennon gostou muito de você”, confidenciou o secretário. “Era como se fossem dois velhos amigos que, há anos, não se viam…”.
Tiros em Manhattan
Osni Omena tinha acabado de voltar do trabalho quando, na noite de 8 de dezembro de 1980, escutou barulho de fogos de artifício na rua. “Ué, o que será que estão comemorando?”, pensou. “Será que são porto-riquenhos comemorando algum feriado nacional?”, especulou.
Alguns minutos depois, Osni ouvia sua estação de rock favorita quando o locutor interrompeu a programação para dar uma notícia que ninguém queria ouvir: o ex-beatle John Lennon acabara de sofrer um atentado na porta do Dakota. Osni não acreditou: não eram fogos, pensou, eram tiros. Atordoado, fez questão de conferir de perto o que estava acontecendo.
“Havia muita gente chorando. Quando soubemos da morte dele, foi um choque muito grande. Uma verdadeira tragédia”, recorda, emocionado.
Anos depois, Omena reencontrou Perdomo, que contou detalhes daquela noite. Fora ele, dissera, quem tirou o 38 das mãos de Mark David Chapman, o assassino de John Lennon. “Você sabe o que você fez?”, perguntou o porteiro. “Sim, eu matei John Lennon”, respondeu o sujeito que não tentou fugir da cena do crime, nem ofereceu resistência aos policiais que lhe deram voz de prisão.
Mallagoli soube da morte de Lennon na terça, dia 9. Passava da uma da tarde quando ele chegou para abrir sua loja, na Faria Lima, em São Paulo, e estranhou a multidão. “Marcão, como você está?”, perguntou um amigo. “Tudo bem, um pouco cansado, por quê?”, respondeu, pegando as chaves no bolso. “Tá bem mesmo, tem certeza?”, insistiu outro. “Por quê? O que houve?”, parou, desconfiado.
Foi quando o sujeito lhe mostrou a manchete do Jornal da Tarde: “Tiros. Lennon Cai. Um Beatle Vai Morrer”. Mallagoni custou a acreditar. “Impossível”, repetia para si mesmo. Só se convenceu da tragédia quando ligou para Nova York e, depois de muito tempo, conseguiu falar com Osni. “É verdade, sim. Mataram o Lennon!”, confirmou o amigo do outro lado da linha. Naquele dia, a lojinha Revolution não abriu. Mallagoli voltou para casa, arrumou suas coisas e pegou o primeiro avião para Nova York. Ainda deu tempo de ouvir a mãe reclamar: “Quero ver se, no dia do meu enterro, você vai chorar assim…”.
Mallagoli chegou a Nova York na manhã do dia 10. Do JFK, seguiu direto para o Dakota.
Os fãs reunidos na frente do edifício não falavam de outra coisa: Mark Chapman, o autor dos disparos, não passava de um bode expiatório.
Segundo os conspiracionistas, a CIA, a agência de inteligência americana, e o FBI, a polícia federal, estariam por trás do assassinato de Lennon, considerado uma influência política perigosa.
A teoria virou livro, Who Killed John Lennon (“Quem matou John Lennon”, inédito no Brasil), escrito pelo jornalista britânico Fenton Bresler, mas nunca foi comprovada.
Naquele mesmo dia, o corpo foi cremado no Cemitério de Ferncliff, em Hartsdale, em Nova York.
No Central Park, a viúva Yoko pediu à multidão que fizesse dez minutos de silêncio. “Quando tocaram Imagine, não resisti. Foi aí que desabei no choro. Nunca chorei tanto na vida”, relata.