por Mariane Morisawa - Veja mais em www.uol.com.br/splash
A música negra está em alta no cinema, e temos como provar. Em “Soul“, Jim Gardner se senta ao piano e perde-se no som do jazz. Em “Uma Noite em Miami“, Sam Cooke derruba uma lágrima ao apresentar pela primeira vez “A Change Is Gonna Come“, que se tornaria o hino do movimento pelos direitos civis.
Em “A Voz Suprema do Blues“, Ma Rainey (Viola Davis) arrepia cantando numa tenda. Sylvie (Tessa Thompson) se apaixona por Robert (Nnamdi Asomugha) ao ouvi-lo tocar saxofone em “O Amor de Sylvie“. Em “Lovers Rock“, os primeiros acordes de “Silly Games” são a deixa para a pista de dança pegar fogo.
Não é de hoje, claro, que o cinema e Hollywood usam os ritmos surgidos na cultura negra, como o jazz, o soul, o blues, o dub e o rap. O primeiro filme falado foi “O Cantor de Jazz” (1927), em que o personagem interpretado por Al Jolson é um imigrante judeu que quer ser… um cantor de jazz.
Hoje o filme é menos conhecido por seu avanço tecnológico revolucionário do que pelo “blackface”, a prática do uso de tinta negra e maquiagem exagerada em que atores brancos fazem caricaturas de pessoas negras.
Segundo o Dr. Robeson Taj Frazier, professor associado de Comunicações e diretor do Instituto para Diversidade e Empoderamento de Annenberg, na Universidade do Sul da Califórnia (USC), este é um dos muitos exemplos de como Hollywood usou expressões negras na música sem nuance.
A música negra historicamente ajudou o cinema e a televisão a demonstrar o clima de uma cena ou apenas a impulsionar o arco narrativo de personagens masculinos brancos.
Taj Frazier
Curiosamente, o ano de “O Cantor de Jazz”, 1927, é também aquele em que se passa a história de Ma’ Rainey em “A Voz Suprema do Blues”. Mas, aqui, a música negra não está a serviço de nenhuma narrativa branca, e sim como demonstração da força e da excelência da cultura e das pessoas negras.
A diferença é que por trás de “A Voz Suprema do Blues” estão o dramaturgo August Wilson (1945-2005) e o diretor George C. Wolfe, ambos negros. “Uma Noite em Miami” é baseado no espetáculo de Kemp Powers, também autor do roteiro, e dirigido por Regina King. Powers é coautor de “Soul” com Pete Docter.
É o mesmo com “O Amor de Sylvie”, escrito e dirigido por Eugene Ashe, que tem um passado na música e se inspirou em sua relação com seus companheiros de banda para construir a camaradagem de Robert com seus colegas. Um deles, Chico, é vivido por Regé-Jean Page —isso mesmo, o Duque de “Bridgerton”.
Para mim era fundamental criar uma história que colocasse a arte, a música e o amor na dianteira e que se passasse num mundo de glamour hollywoodiano.
Eugene Ashe
E também com o inglês Steve McQueen, diretor da série de cinco filmes “Small Axe“, na qual se inclui “Lovers Rock“, ainda inéditos no Brasil. Conhecido por “Shame” e “12 Anos de Escravidão”, ele queria contar a experiência dos imigrantes do Caribe em Londres. Para isso, a música era fundamental.
A música é onde os negros se refugiam para manter a sanidade. Eles trabalham pensando no fim de semana, porque têm de aguentar muita m… lidando com o racismo durante a semana.
Steve McQueen
Em resumo, ao contrário da maior parte da produção anterior de Hollywood focada em jazz, blues e outros gêneros musicais, esses longas recentes foram todos escritos e dirigidos por pessoas negras que entendem a cultura de forma profunda.
Segundo o professor Frazier, para a maior parte desses autores e cineastas, a música negra foi o espaço fundamental de conscientização, nos anos 1990 e 2000, com a ajuda dos videoclipes. Ou seja, havia um registro sonoro, mas também visual e cinematográfico.
Eles estão interessados em usar várias abordagens para a imagem, a espiritualidade, a performance e o som, especialmente abordagens afro-diaspóricas.
Taj Frazier
Esses realizadores também têm uma visão mais complexa, evitando imagens de pura dor, como o músico de jazz atormentado, sofredor, que se destrói pelas drogas, visto em cinebiografias como “Bird” e “Nina”, dirigidas respectivamente por Clint Eastwood e Cynthia Mort, ambos brancos.
Músicos, cantores e rappers negros geram um fascínio global, especialmente os homens. É um grupo transformado em ícone e fetichizado pelos brancos e não-brancos, como destaca o professor Frazier. Por isso, a indústria do cinema sempre tentou capitalizar em cima disso.
Durante muito tempo, músicos foram os únicos papéis aceitos para um ator ou atriz negro em Hollywood —além de pessoas escravizadas, criminosos, empregados domésticos, quase sempre em papéis secundários.
Frazier acha que, até em filmes de cineastas da diáspora africana, há risco de que imagens e narrativas se alinhem com percepções de alguns sobre negros ou as reforcem. E é possível que agora, sob pressão por representatividade, seja mais fácil para Hollywood apostar em projetos com músicos negros.
A indústria cinematográfica não gosta de se arriscar. Então, mesmo quando está fazendo filmes com mais pessoas negras na frente e atrás das câmeras, é uma decisão bem calculada.
Taj Frazier
Que seja. A presença de diretores, roteiristas, fotógrafos, figurinistas e outros profissionais negros contando essas histórias é fundamental, diz Juliana Barreto Farias, historiadora, jornalista e professora adjunta da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).
Faz muita diferença, porque coloca os negros, tanto atores como outros artistas, numa posição muito importante de sujeito do próprio olhar cinematográfico.
Juliana Barreto Farias
Tanto que, nesses novos filmes, a música é em geral lugar de alegria, de empoderamento, de amor. Por isso, o professor Frazier concorda que é muito importante que cineastas negros ocupem esse espaço. Mas defende mais.
É necessário que cineastas negros ocupem outros lugares… espaços artísticos da comunidade, de narrativas digitais, de artes visuais e principalmente educacionais.
Taj Frazier
Ainda falta muito trabalho para chegar à representatividade de fato. Mas os filmes lançados recentemente apontam um bom caminho. E provam que talento não falta para isso.